Um dos momentos decisivos na vida de Jacó, figura central escolhida por Deus para liderar a nação de Israel, foi seu ato enganoso de se passar por seu irmão Esaú diante do pai, Isaque. Exploraremos esse evento mais tarde, mas por agora, vamos nos concentrar no incidente anterior e relacionado: o pedido de Jacó para que Esaú vendesse seu direito de primogenitura e a motivação de Esaú para vendê-lo. Após a morte de Abraão, Gênesis 25 passa a narrar a história de Isaque e Rebeca, preparando o cenário para a narrativa principal de todo o Livro de Gênesis — a vida de Jacó e seus descendentes.
A profecia de Rebeca
Isaque tinha 40 anos quando se casou com Rebeca. Como várias mulheres importantes na Bíblia, Rebeca enfrentou a infertilidade. Diante da súplica de Isaque, Deus a abençoou, e ela concebeu. Quando Esaú e Jacó nasceram, Isaque tinha 60 anos, o que significa que o casal suportou 20 anos de esterilidade. Durante a gravidez, Rebeca sentiu movimentos intensos. Ela não sabia na época, mas seus gêmeos lutavam em seu ventre. Confusa, buscou a orientação de Deus (o texto não especifica como ou por meio de quem). A resposta divina foi enigmática, pelo menos na versão disponível no Livro de Gênesis, complicada pelo vocabulário hebraico e gramática incomum:
“Disse-lhe o Senhor: Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas; um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais novo (וְרַב יַעֲבֹד צָעִיר, pronunciado: v’rav ya’avod tza’ir)” (Gn 25:23, ACR).
Quando os gêmeos nasceram, Jacó saiu segurando o calcanhar de Esaú, como se não quisesse ficar para trás. Isso originou seu nome, Jacó (יַעֲקֹב, pronunciado: Ya’akov), derivado de “calcanhar” (בַּעֲקֵב, pronunciado: ba’akev), um claro jogo de palavras (Gn 25:24-26). O texto descreve as personalidades contrastantes dos irmãos:
“E cresceram os meninos; e Esaú foi homem perito na caça (אִישׁ יֹדֵעַ צַיִד, pronunciado: ish yodea tza’yid), homem do campo; mas Jacó era homem simples (אִישׁ תָּם, pronunciado: ish tam), habitando em tendas. E Isaque amava Esaú, porque a caça era de seu gosto (צַיִד בְּפִיו, pronunciado: tza’yid b’fiv); mas Rebeca amava Jacó” (Gn 25:27-28, ACR).
O mundo antigo valorizava a rusticidade de Esaú, sua habilidade como caçador, sua força e instinto de sobrevivência. Jacó, em contraste, era mais refinado (o hebraico é incerto, mas pode significar algo como íntegro), permanecendo próximo ao lar. O texto registra uma divisão parental: Isaque favorecia Esaú, provavelmente por seu próprio gosto pela caça, enquanto Rebeca era mais próxima de Jacó, talvez porque ele simplesmente estava mais presente. A Bíblia não hesita em mostrar essa afeição desigual, uma dinâmica que molda a história da família.
Rebeca provavelmente compartilhou com Jacó a mensagem divina que lembrava da profecia: “o mais velho servirá ao mais novo” (Gn 25:23). Essa revelação provavelmente influenciou sua decisão de orquestrar a impostura de Jacó como Esaú. Também pavimentou o caminho para que Jacó adquirisse o direito de primogenitura de Esaú por um simples prato de ensopado (Gn 25:29-34).
A fé, o medo e a confusão de Rebeca
As ações de Rebeca sugerem que ela desconhecia algo que Isaque sabia: havia duas bênçãos distintas. A primeira, destinada a Esaú, mas obtida por Jacó através de engano, era a bênção do primogênito, focada em prosperidade material e liderança do clã:
“Deus te dê do orvalho do céu, e das gorduras da terra, e abundância de trigo e de mosto; sirvam-te povos, e nações se encurvem a ti; sê senhor de teus irmãos, e os filhos de tua mãe se encurvem a ti; malditos sejam os que te amaldiçoarem, e benditos os que te abençoarem” (Gn 27:28-29, ACR).
A segunda, muito mais significativa, era a bênção da aliança de Abraão, que Isaque pretendia dar a Jacó desde o início. Ele acabou fazendo isso antes de enviá-lo a Padã-Arã para se esconder da fúria do irmão:
“E Deus Todo-Poderoso te abençoe, e te faça frutificar, e te multiplique, para que sejas uma multidão de povos; e te dê a bênção de Abraão, a ti e à tua descendência contigo, para que herdes a terra de tuas peregrinações, que Deus deu a Abraão” (Gn 28:3-4, ACR).
Enquanto Jacó, agora fugitivo da ira de Esaú, dormia sobre uma pedra e sonhava com uma escada ao céu, Deus reafirmou essa bênção abraâmica que ele já havia recebido do pai:
“Eu sou o Senhor, Deus de Abraão teu pai, e Deus de Isaque; esta terra em que estás deitado, eu a darei a ti e à tua descendência; e a tua descendência será como o pó da terra, e estender-se-á ao ocidente, e ao oriente, e ao norte, e ao sul; e em ti e na tua descendência serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 28:13-14, ACR).
A organização de Rebeca para que Jacó enganasse Isaque e obtivesse a bênção (Gn 27) pode ter sido ainda mais influenciada pelos casamentos de Esaú com duas mulheres hititas, que já causavam grande angústia a ela e a Isaque (Gn 26:34-35). Esses casamentos provavelmente trouxeram grande decepção com Esaú, mas, talvez mais significativamente, despertaram temor pela pequena comunidade da aliança que ainda chamavam de família. Se o futuro líder da família não conseguia guiar suas esposas a honrar seus pais, como estaria qualificado para liderar todos?
Em outras palavras, Rebeca pode ter temido o caos adicional que essas mulheres — e seu status elevado — trariam ao clã se Esaú, como primogênito, assumisse sua herança e direitos. Sua proeminência na família poderia agravar essa angústia, levando Rebeca a assegurar que Jacó recebesse a bênção do primogênito.
A escolha irracional de Esaú
A narrativa muda rapidamente para Esaú retornando exausto e faminto de uma caçada, já que ele e sua equipe eram os principais provedores do clã. Jacó, provavelmente antecipando a oportunidade, pode ter planejado o cozimento para controlar a distribuição de comida.
Lemos:
“Disse Esaú a Jacó: Deixa-me, peço-te, comer desse guisado vermelho, pois estou cansado (הַלְעִיטֵנִי נָא מִן-הָאָדֹם הָאָדֹם הַזֶּה כִּי עָיֵף אָנֹכִי, pronunciado: hal’iteini na min-ha’adom ha’adom hazeh ki ayef anochi)” (Gn 25:30, ACR).
O hebraico capta vividamente o desespero de Esaú, suplicando literalmente: “Deixa-me engolir esse vermelho, esse vermelho, porque estou exausto.” Esse pedido impulsivo pelo ensopado de lentilhas vermelhas lhe rendeu o nome Edom (אֱדוֹם, pronunciado: Edom), ligado à palavra hebraica para “vermelho”, e seus descendentes ficaram conhecidos como edomitas.
O texto continua:
“Então disse Jacó: Vende-me hoje a tua primogenitura. E disse Esaú: Eis que estou a ponto de morrer; para que me servirá a primogenitura?” (Gn 25:31-32, ACR).
Em uma reviravolta irracional e bizarra, Esaú concorda com a exigência absurda de Jacó. Exagerando sua fome, ele prioriza alívio imediato em vez de seu futuro papel como líder. Em outras palavras, ele opta por satisfação tangível agora em vez de abraçar sua futura responsabilidade abençoada. Além da liderança familiar, esse direito incluía uma porção dobrada da herança (Dt 21:17). Desconfiado da seriedade de Esaú, Jacó insiste em confirmação:
“Então disse Jacó: Jura-me hoje. E jurou-lhe, e vendeu a sua primogenitura a Jacó. E Jacó deu pão a Esaú e o ensopado de lentilhas; e ele comeu, e bebeu, e levantou-se, e seguiu seu caminho. Assim desprezou Esaú a sua primogenitura” (Gn 25:33-34, ACR).
O hebraico enfatiza a atitude despreocupada de Esaú com uma sequência rápida de verbos: “comeu, bebeu, levantou-se, partiu” (וַיֹּאכַל וַיֵּשְׁתְּ וַיָּקָם וַיֵּלַךְ, pronunciado: vayyo’khal vayyesht vayyakom vayyelakh). Essa construção ágil destaca sua indiferença, como se a transação fosse insignificante. Ele agiu como se nada tivesse acontecido. A narrativa, porém, conclui de forma contundente: “Assim desprezou Esaú a sua primogenitura” (וַיִּבֶז עֵשָׂו אֶת-הַבְּכֹרָה, pronunciado: vayyivez Esav et-hab’khorah), focando no descaso imprudente de Esaú por seu status privilegiado.
Conclusão
Na história complexa da vida de Jacó, encontramos uma tapeçaria de promessa divina e imperfeição humana, oferecendo lições profundas para nossas próprias jornadas. Rebeca, movida pela profecia de que “o mais velho servirá ao mais novo”, agiu com fé, mas talvez também impulsionada pelo medo das escolhas irrefletidas de Esaú e seus casamentos problemáticos. Esaú, em sua fome, trocou sua primogenitura por um prato de ensopado passageiro, um lembrete contundente de valorizar oportunidades duradouras em vez de satisfações temporárias. Jacó, cujo nome significa “aquele que segura o calcanhar”, personifica persistência, mas seu caminho até as verdadeiras bênçãos mostra que os planos divinos prevalecem apesar de nossas falhas. As lutas da vida, como a batalha dos gêmeos no ventre de Rebeca, podem parecer caóticas, mas nos moldam e definem nossos destinos. Que escolhamos com sabedoria, agarrando-nos às promessas de Deus com paciência, mas também confiando que mesmo nossos tropeços podem levar a horizontes abençoados, onde a presença de Deus nos guiará para propósito, chamado e esperança verdadeiros.