A dificuldade em compreender as (aparentes) contradições de Paulo está no seguinte: a carta aos Romanos defende e afirma o povo judeu, enquanto a carta aos Gálatas parece desprezar a Lei (Torá) e a identidade covenantal do povo judeu. A seguir, mostrarei por que o conteúdo do que Paulo escreveu a cada congregação faz pleno sentido em cada caso.
Paulo em Jerusalém
Precisamos começar em um lugar um tanto incomum – o relato ocular de Lucas (Lúcio), que documentou grande parte da vida do apóstolo Paulo. Digo que é um lugar incomum para começar porque normalmente as pessoas mergulham diretamente em Romanos ou Gálatas para reconciliar as palavras de Paulo nesse contexto imediato. No entanto, acredito que essa abordagem é prematura. Meu raciocínio é que a maior parte do que Paulo escreve em Romanos não se relaciona com sua própria prática em relação à Torá, mas sim com como as nações devem viver na adoração ao mesmo Deus que o remanescente fiel de Israel continua a adorar. Em outras palavras, embora saibamos o que Paulo escreveu às nações em Cristo, não sabemos, por suas cartas, que conselho ele daria a seus compatriotas judeus. Curiosamente (e talvez previsivelmente), como o próprio Paulo viveu é descrito com mais detalhes por Lucas, a quem agora nos voltamos para obter informações.
Começamos em Atos 21:17, quando Paulo chegou a Jerusalém com seus cooperadores no evangelho e foi calorosamente recebido pela comunidade de seguidores de Cristo. Depois que Paulo e seu grupo descansaram da viagem, participaram de uma reunião com Yakov/Jacó (a quem as Bíblias em português continuam a chamar incorretamente de “Tiago”) e os anciãos da(s) congregação(ões) de Jerusalém. Terminadas as apresentações, Paulo começou a relatar a história da obra surpreendente de Deus (e, para a maioria deles, inesperada) entre as nações por meio do improvável instrumento de seu próprio ministério (Atos 21:18-19). Quando os anciãos e Jacó (que parece ser o líder entre eles) ouviram o testemunho de Paulo, glorificaram a Deus com sincera reverência, mas logo trataram de um assunto mais próximo de casa – os rumores sobre o apóstolo Paulo, que acreditavam ser falsos.
É importante lembrar que esta não foi a primeira vez que Paulo encontrou os anciãos de Jerusalém. Ele esteve presente no “Concílio de Jerusalém”, onde aceitou com alegria “o decreto”, levando a carta apostólica com suas decisões (Atos 15–16) e implementando-o em suas congregações (igrejas). No entanto, lemos em Atos 21:20-21 uma acusação principal e duas secundárias contra Paulo, relacionadas à desinformação de que ele teria aplicado as mesmas diretrizes aos judeus que às nações:
“E, ouvindo isso, começaram a glorificar a Deus e disseram-lhe: Bem vês, irmão, quantos milhares há entre os judeus que têm crido, e todos são zelosos da lei. E já acerca de ti foram informados de que ensinas todos os judeus que estão entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo que não circuncidem seus filhos nem andem segundo os costumes.”
Os difamadores de Paulo o acusavam de ensinar os judeus a abandonarem a Torá, 1) não circuncidando seus filhos e 2) afastando-se dos costumes ancestrais judaicos. O cerne da acusação era que Paulo supostamente instruía os judeus a se converterem do judaísmo. Como vimos em seções anteriores de nosso estudo, o oposto era verdade. Assim como Paulo cria que as nações deveriam permanecer como nações, ele estava igualmente convencido de que os judeus deveriam permanecer como judeus.
Aqui, refiro-me à regra que ele estabeleceu em todas as suas congregações, conforme 1 Coríntios 7:17. Jacó, junto com os anciãos, propôs um teste simples que, se Paulo o cumprisse publicamente (e estavam convencidos de que o faria), calaria todas as línguas mentirosas:
“Que faremos, pois? Certamente ouvirão que já chegaste. Faze, pois, isto que te dizemos: Temos quatro homens que fizeram voto; toma estes contigo, e santifica-te com eles, e faze por eles os gastos para que rapem a cabeça, e todos ficarão sabendo que nada há daquilo de que foram informados acerca de ti, mas que também tu mesmo andas guardando a lei. Quanto aos gentios que creram, já nós decidimos e lhes escrevemos que se guardem das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição.” (Atos 21:22-25)
Jacó e os anciãos não estavam confusos. Sabiam exatamente de onde vinham os falsos rumores – de pessoas que não entenderam que o concílio de Jerusalém havia esclarecido que os membros das nações que vinham adorar o Deus de Israel só estavam obrigados a observar os requisitos impostos pela Torá aos estrangeiros que viviam com Israel (Atos 15:22-29; Levítico 17–20). Essa decisão nunca implicou que os judeus em Cristo estivessem agora livres para comer um sanduíche de presunto ou frutos do mar proibidos. Os anciãos entendiam isso, e Paulo também.
Paulo fez exatamente como Jacó sugeriu, confirmando o ponto que Jacó havia feito sobre ele: que ele “anda(s) guardando a lei” (Atos 21:24). Paulo não era conhecido por ser inconstante e sempre defendeu aquilo em que acreditava firmemente, como lemos no versículo 26:
“Então Paulo, tomando consigo aqueles homens, entrou no dia seguinte no templo, já santificado com eles, anunciando serem já cumpridos os dias da purificação, até que por cada um deles se fez a oferta.”
Para qualquer judeu que julgasse Paulo por suas ações, o caso estava encerrado. Paulo andava ordenadamente, guardando a Torá e, portanto, não poderia estar instruindo seus compatriotas judeus a fazer o contrário. Quanto às nações que seguiam o Cristo judeu, Paulo ensinava que elas deveriam seguir as injunções da carta enviada anteriormente pelos anciãos e apóstolos em Jerusalém. Não havia inconsistência nisso.
Os Judeus no Império Romano
Muitos se surpreendem ao perceber que o movimento israelita no Império Romano representava entre 6% e 10% de toda a população. Isso significa que havia uma minoria formidável em cada cidade, incluindo a própria capital – Roma. Essa minoria era grande e influente o suficiente para causar problemas significativos ao governo romano. Roma contava com pelo menos onze sinagogas requintadas, que, embora hoje sejam uma instituição exclusivamente judaica, não o eram no tempo de Paulo.
As sinagogas, ou locais de reunião, eram instituições públicas romanas muito utilizadas pela comunidade judaica, mas também abertas ao público romano. Isso coloca Atos 15:21 em seu contexto histórico adequado. Quando Jacó/Tiago anunciou sua opinião de que os membros das nações que seguiam o Cristo judeu precisavam observar o conjunto de leis impostas pela Torá aos estrangeiros que viviam com Israel, ele explicou seu raciocínio:
“Porque Moisés tem, desde os tempos antigos, em cada cidade, quem o pregue, e cada sábado é lido nas sinagogas.” (Atos 15:21)
Embora a influência judaica no Império Romano e na própria Roma fosse significativa, as opiniões dos poderosos romanos variavam de admiração e grande respeito pelos judeus a completo desgosto e desconfiança. Seguem alguns exemplos de declarações positivas (embora confusas) sobre os judeus por autores greco-romanos:
Josefo escreveu que Clearco de Solis (c. 300 a.C.) narrou uma história em que seu professor, Aristóteles, conhecera um judeu. Aristóteles ficou impressionado e considerou o judeu “grego tanto na língua quanto na alma”, apesar de os judeus serem “descendentes dos filósofos indianos” (Josefo, Contra Apião 1.180 = Stern no. 15). Tácito, um senador romano, historiador e orador, famoso por suas obras Anais e Histórias, escreve:
“Ao descrever os últimos dias de uma cidade famosa, parece-me apropriado relatar sua origem. Diz-se que os judeus eram originalmente exilados da ilha de Creta que se estabeleceram nas partes mais distantes da Líbia quando Saturno foi deposto e expulso por Júpiter. Um argumento a favor disso é derivado do nome; há uma famosa montanha em Creta chamada Ida, e daí seus habitantes eram chamados de Idaei, que mais tarde foi alongado para a forma bárbara Iudaei…” (Tácito, Histórias 5.2).
Quando o grande escritor romano Varrão, um erudito e autor prolífico de centenas de livros sobre jurisprudência, astronomia, geografia, educação, sátiras, poemas e discursos, argumenta que os deuses de Roma não deveriam ter imagens, ele se refere aos judeus e seu Deus:
“Ele [Varrão] também diz que os antigos romanos adoravam os deuses sem imagens por mais de 170 anos. ‘Se esse costume tivesse continuado até os nossos dias’, diz ele, ‘nossa adoração aos deuses seria mais devota.’ E, em apoio à sua opinião, ele cita, entre outras coisas, o testemunho da raça judaica” (Varrão, Antiguidades, c. 116–27 a.C., citado por Agostinho, Cidade de Deus 4.31, c. 354–430 d.C.).
Aqui estão alguns exemplos de declarações negativas sobre os judeus por autores greco-romanos que não mencionei em seções anteriores. Algumas dessas declarações só sobreviveram em fontes muito posteriores como citações. Josefo relata um mito romano comum usado por Apião sobre os judeus:
“…[eles] sequestram um estrangeiro grego, engordam-no por um ano e depois o levam a um bosque, onde o matam, sacrificam seu corpo com seu ritual costumeiro, comem sua carne e, enquanto imolam o grego, juram hostilidade aos gregos” (Josefo, Contra Apião 2.94–96).
Ou considere isto:
“…os judeus então se estabeleceram em Jerusalém e seus arredores e ‘transformaram seu ódio pelas pessoas em uma tradição’ e ‘introduziram leis estranhas: não partir o pão com nenhuma outra raça, nem lhes mostrar qualquer boa vontade'” (Fócio, Biblioteca 244.379).
Falando dos judeus, Sêneca, um filósofo estoico romano, estadista e dramaturgo, diz:
“Enquanto isso, os costumes dessa raça maldita ganharam tal influência que agora são recebidos em todo o mundo. Os vencidos deram leis aos seus vencedores.” (Sêneca, citado por Agostinho, Cidade de Deus, c. 5 a.C.–65 d.C.)
Como podemos ver, as atitudes dos autores greco-romanos eram variadas e, sem dúvida, refletiam a situação entre os cidadãos de Roma, que era difícil. Quando os tementes a Deus romanos se juntaram ao movimento de Jesus em Roma, fizeram-no como outros – em conexão com a comunidade judaica. Para eles, agora faziam parte, de alguma forma, da comunidade pró-judaica, que atuava como uma zona de amortecimento político entre os judeus e as nações residentes no Império Romano. No entanto, em certo momento, o imperador Cláudio expulsou todos os judeus de Roma. É assim que a história romana antiga relata:
“Como os judeus constantemente causavam distúrbios por instigação de Cresto [erro de grafia para Cristo?], ele [o imperador Cláudio] os expulsou de Roma” (Divius Claudius 25).
Este é o mesmo imperador que executou vários membros de sua própria família por se converterem ao judaísmo, buscando mostrar-se como o verdadeiro protetor da honra e do serviço aos deuses romanos. O Novo Testamento confirma decisivamente esse relato:
“Depois disso, Paulo partiu de Atenas e foi para Corinto. Lá encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, que havia chegado recentemente da Itália com sua esposa Priscila, porque Cláudio decretara que todos os judeus saíssem de Roma.” (Atos 18:1-2)