Nos versículos anteriores (Gn 6:1-2), lemos sobre o misterioso grupo chamado “os filhos de Deus” que tomavam as “filhas dos homens” como esposas conforme sua vontade. Discutimos várias possibilidades interpretativas para identificar quem eram esses “filhos de Deus”. Concluímos que a interpretação mais responsável (embora outras sejam possíveis) é considerar os “filhos de Deus” como seres celestiais poderosos, membros do Conselho Divino (Sl 82). Agora, voltaremos nossa atenção para como isso pode estar conectado aos lendários Nefilins (também conhecidos em algumas traduções como gigantes).
Os Nefilins em Gênesis: Uma Conexão Tênue
“Os Nefilins estavam na terra (הַנְּפִלִים הָיוּ בָאָרֶץ) naqueles dias, e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens (אֲשֶׁר יָבֹאוּ בְּנֵי הָאֱלֹהִים אֶל-בְּנוֹת הָאָדָם), as quais lhes deram filhos. Esses foram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama (הֵמָּה הַגִּבֹּרִים אֲשֶׁר מֵעוֹלָם, אַנְשֵׁי הַשֵּׁם).” (Gn 6:4)
Segundo as tradições apresentadas nos Livros de Enoque e Jubileus, os Nefilins seriam os filhos e netos dessas uniões. Com o tempo, essa tornou-se a visão majoritária em diversas tradições judaicas e cristãs.
Ao ler Gênesis 6 novamente, com atenção, percebe-se como o autor é cauteloso ao relacionar os dois eventos. No mínimo, podemos dizer que Moisés não parece certo sobre essa conexão. Ele observa que, na época em que os filhos de Deus se relacionavam com as filhas dos homens, os Nefilins já habitavam a terra. Ele usa a expressão hebraica בַּיָּמִים הָהֵם (bayamim haham), que significa “naqueles dias”, e acrescenta “e também depois” (וְגַם אַחֲרֵי; v’gam acharey). O texto de Gênesis 6:1-4 sugere que Moisés suspeitava que os Nefilins eram fruto dessas uniões proibidas, mas não tinha certeza. Isso é compreensível, pois Moisés não viveu naquela época nem teve acesso a relatos diretos. Ele escreveu séculos depois, baseado em tradições orais transmitidas a ele.
Além disso, Moisés não parece ver os Nefilins de forma negativa. Em sua narrativa, eles são descritos quase com admiração: “Esses foram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama”.
Os Nefilins em Números: Gigantes e Medo
Ao estudarmos a natureza dos Nefilins, não podemos ignorar um texto crucial no Livro de Números, que relata o relato negativo dos espias enviados por Moisés à terra prometida:
“O povo que habita nessa terra é poderoso, e as cidades são fortificadas e muito grandes. Também vimos ali os descendentes de Anaque (em hebraico, Anaque significa Gigante). Os amalequitas habitam na terra do Neguebe; os hititas, os jebuseus e os amorreus habitam na região montanhosa; e os cananeus habitam junto ao mar e ao longo do Jordão… Assim, levaram ao povo de Israel um mau relatório da terra que haviam espiado, dizendo: A terra pela qual passamos para espiá-la é terra que devora os seus habitantes; e todo o povo que vimos nela são homens de grande estatura. Também vimos ali os Nefilins (הַנְּפִילִ֛ים), os filhos de Anaque, descendentes dos Nefilins (בְּנֵ֥י עֲנָ֖ק מִן־הַנְּפִלִ֑ים); e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos; e assim também éramos aos seus olhos.” (Nm 13:28-33)
Não está claro por que Números 13:33 usa grafias diferentes para “Nefilins” na mesma frase. A primeira ocorrência inclui a letra “yod”, enquanto a segunda não. A forma “נְּפִילִים” (primeira ocorrência) não se encaixa perfeitamente na morfologia esperada da raiz hebraica “נָפַל” (naphal), que significa “cair”. O falecido Michael Heiser observou que, se “Nefilins” derivasse de “naphal”, seria escrito de forma diferente, como “nephulim” ou “nophelim”, seguindo as regras padrão de formação de palavras em hebraico. Ele sugere que a forma “Nefilins” pode ter origem aramaica ou acádia (נפילא; naphila), onde a palavra pode significar “gigante” ou “ser monstruoso”. Essa teoria é reforçada pelo fato de “Nefilins” (escrito com “yod”) aparecer apenas em dois lugares na Bíblia Hebraica, indicando possível origem estrangeira ou não convencional. Outras explicações mencionam a falta de padronização ortográfica no mundo antigo, mas como a variação ocorre na mesma frase, essas explicações parecem insuficientes.
O versículo, no entanto, claramente associa os anaquins aos Nefilins, mostrando que os anaquins estavam de alguma forma ligados à família mais ampla dos Nefilins.
Os Anaquins e Golias: Descendentes dos Nefilins
No Livro de Josué, lemos que, graças aos esforços de Josué (que foi um dos doze espias), os anaquins foram quase totalmente exterminados, restando poucos sobreviventes:
“Foi quando Josué exterminou os anaquins da região montanhosa, de Hebrom, de Debir, de Anabe, e de toda a região montanhosa de Judá, e de toda a região montanhosa de Israel; Josué os destruiu totalmente com as suas cidades. Não restaram anaquins na terra dos filhos de Israel; somente em Gaza, em Gate e em Asdode ficaram alguns deles.” (Js 11:21-22)
É inevitável lembrar aqui de um dos gigantes mais famosos da história bíblica – Golias de Gate, um dos últimos anaquins/Nefilins:
“Saul e os homens de Israel se reuniram e acamparam no vale de Elá, dispondo-se em ordem de batalha contra os filisteus. Os filisteus estavam num monte de um lado, e os israelitas noutro monte do outro lado, ficando o vale entre eles. Então saiu do arraial dos filisteus um campeão, chamado Golias, de Gate, que tinha de altura seis côvados e um palmo (cerca de 3 metros).” (1Sm 17:2-4)
Em 2 Samuel 21:15-22, quatro guerreiros gigantes de Gate, provavelmente parentes de Golias, são mortos pelos homens do rei Davi. Esses guerreiros são descritos como “nascidos do gigante em Gate”, ligando-os à linhagem de Golias. Outros textos, como Deuteronômio 2:10-11 e 20-21, mencionam povos gigantes em Canaã, incluindo os refains, anaquins, emins e zanzumins.
A Septuaginta e as Tradições Judaicas: Gigantes num Mundo Helenístico
A Septuaginta (LXX), tradução grega da Bíblia Hebraica dos séculos III-II a.C., traduz o termo hebraico Nefilins (נְפִילִים) em Gênesis 6:4 e Números 13:33 como gigantes (γιγάντες), significando “gigantes”. Essa escolha de tradução provavelmente reflete mais fatores interpretativos do que linguísticos.
Os tradutores judeus da Septuaginta grega podem ter pensado que Nefilins (נְפִילִים) derivava do aramaico naphiyla (נְפִילָא), que significa “gigante” ou “ser monstruoso”. Trabalhando num contexto helenístico, podem ter usado deliberadamente o termo gigantes em grego para evocar os aspectos físicos e mitológicos, aludindo aos Titãs ou Gigantes da mitologia grega – seres poderosos e de tamanho descomunal.
Faz sentido que os tradutores da LXX, trabalhando na cidade grega de Alexandria, tenham escolhido gigantes para tornar o texto acessível a judeus e gregos de fala grega, conectando conceitos hebraicos ao quadro cultural grego. Essa escolha pode refletir uma tradição interpretativa em vez de uma renderização filológica estrita, priorizando o status lendário dos Nefilins sobre outras possíveis etimologias.
Além disso, os tradutores provavelmente foram influenciados por outras tradições judaicas que entendiam e enfatizavam os Nefilins como gigantes. O Primeiro Livro de Enoque descreve os Nefilins como descendentes gigantes dos Vigilantes, sugerindo uma antiga tradição interpretativa judaica que a Septuaginta incorporou:
“E eles [os Vigilantes] eram em duzentos; que desceram nos dias de Jared sobre o monte Hermom… E tomaram para si esposas… e geraram grandes gigantes.” (1 Enoque 6:6-7)
“E elas [as mulheres humanas] conceberam e geraram grandes gigantes, cuja altura era de três mil côvados (1.372 metros).” (1 Enoque 7:2)
“E eis que as filhas dos homens geraram gigantes, e toda a terra se encheu de sangue e injustiça.” (1 Enoque 9:9)
A tradução da LXX de Nefilins como gigantes provavelmente reflete uma combinação de pistas contextuais (sua natureza poderosa e temível), adaptação cultural (alinhando-se com a mitologia grega) e possivelmente uma tradição interpretativa como a dos Livros de Enoque.
O Legado dos Nefilins: Mito, História e Teologia
Os Nefilins estão entre as figuras mais misteriosas da Bíblia, conectando histórias e tradições antigas. Em Gênesis 6:4, surgem dos “filhos de Deus” que se unem às “filhas dos homens”, e em Números 13:33 são associados aos temíveis anaquins. Descritos como seres poderosos, Moisés os menciona com cautela, sugerindo origens obscuras. Textos posteriores, como o Livro de Enoque e a tradução “gigantes” da Septuaginta, os tornam ainda mais lendários. Vistos como seres caídos ou gigantes heroicos, mostram uma mistura de influências hebraicas, aramaicas e gregas, especialmente na Septuaginta. Ligados a figuras como Golias, desempenham papel importante nas narrativas bíblicas e até em ideias judaico-cristãs. Sua história, enraizada nas Escrituras e na tradição, continua a fascinar, lembrando-nos do fascínio do mundo antigo pelo extraordinário.
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